terça-feira, 23 de fevereiro de 2021


 


Regresso a casa

 

Quando regresso a casa e aos ângulos escuros das trevas.

Espalho, a névoa que trago nas algibeiras, pelas mesas desertas

e pela poeira dos livros, cansados das noites de lentidão.

Deito o corpo, exausto dos dias iguais e das tonturas

das conversas inúteis e inutilíssimas.

Que sei eu desses afazeres mundanos e dos escândalos

e das leviandades alheias?

Se um dia a juventude voltasse, voaria junto

das aves marinhas, nas intermináveis águas do oceano,

no marulhar das ondas e dos peixes com asas.

Antes que eu grite, deixa-me contar-te como é sábio

o sussurrar do rio, quando me transpõe o sonho de ser água.

Regresso a casa. Tudo se confunde com o real,

e o imaginário permanece inerte, cansado de sombras

e névoas trazidas nas algibeiras.

Deito o corpo, já gasto dos dias iguais e dos papeis estampados,

nos espelhos, velhos e sujos, de rostos desfocados.

Regresso a casa.


ana paula lavado ©

 



terça-feira, 1 de setembro de 2020

Já não te faço falta


Já não te faço falta


Quando nos encontrávamos, naquela Linha quatro,

rodeados de rostos indiferentes e bagagens,

e  abraços de saudade que inundavam o cais,

o nosso abraço era mais forte, do que todos os outros abraços.

Agora, já não te faço falta. As tuas mãos, cálidas, já não pousam

no meu corpo, nem os versos entoam cânticos aos deuses.

Ainda tenho as folhas de papel, algumas que restam das

cartas que te escrevia, enquanto esperava o encontro 

na Linha quatro, mas, inevitavelmente, estão a ficar

amarelecidas, como as folhas do Outono.

As luzes da cidade continuam a iluminar os corpos

que vagueiam sem destino, alheias ao corpo

que pertence à minha alma.

Quando agora saio na Linha quatro, encontro outros abraços, que contemplo, com um gosto amargo na boca. 

Vou andando nas ruas da cidade, vou escrevendo folhas

de papel, mas já não entoo cânticos aos deuses. 

Eles não precisam de mim, 

e eu já não te faço falta!


ana paula lavado ©

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

já nada sobra desta folha de papel




já nada sobra desta folha de papel

já nada sobra desta folha de papel
indiferente aos retratos dispersos pelas estantes da casa.
o corpo move-se longe das palavras
e escorre-me na pele o suor das noites desertas
e dos sonhos vazios que subitamente ardem em fogo lento.
ao acaso escolho um lugar vazio igual ao das outras noites
e tento adormecer entre as cassiopeias
e o ar marítimo das grandes travessias
que me deixa agonia na boca.

o silêncio desenha-se nas paredes brancas
e as raízes do orvalho descem pelas janelas
trazendo estrelas secretas que ocultam as marés.
já nada me prende a este barco
nem a estes espaços enevoados
nem às águas turvas que pernoitam no fundo do rio.
já nada sobra desta folha de papel
indiferente aos retratos dispersos pela casa.


ana paula lavado ©  

domingo, 17 de novembro de 2019

Desço sobre a noite quando os pássaros dormem




Desço sobre a noite quando os pássaros dormem
e surpreendo-me com o ar triste que vem das janelas
abandonadas às memórias da morte.
Escorre-me na pele o suor dos lençóis que se masturbaram
desocupados de gente e de calor
e o corpo incendeia-se com a boca a saber ao amargo
das noites lentas.  

As ruas estão vazias.
As águas que me pertencem já não são deste rio
e os peixes têm a morte lenta da solidão.

ana paula lavado ©  



Hei-de emergir dos muros escuros da cidade



Hei-de emergir dos muros escuros da cidade

Hei-de emergir dos muros escuros da cidade
ou das terras profundas onde o cheiro a morte me sufoca.
Sentada numa praceta onde moraram as aves
revejo corpos embriagados a dançarem na lama suja do chão.
Um candeeiro de lâmpada partida esconde os rostos
desfigurados de álcool, pastilhas e coca
e o rasto a sexo barato vendido nas esquinas mais escuras.

Rebenta-me uma veia no peito e o sangue espalha-se
e transforma-se em veneno que se alastra pelo corpo
e me inunda, e me carrega a morte lenta da desilusão.

ana paula lavado ©  

A vida e a morte




A vida e a morte

(À memória de Jorge d’Além Mar)

Vejo-te aqui e agora
em todos os lugares possíveis
consciente e visível.
A realidade não me trairá
enquanto não duvidar dos teus poemas
e eu puder fazer de conta que estou contigo.

Nunca duvides do que penso
que do pensamento farei cidades impossíveis
iluminadas por estrelas imortais.

Provavelmente alguma alma nos acompanhará
e deixará de haver fronteiras
invisíveis aos nossos olhos e ao nosso pensamento.

Afinal, vida e a morte não passam de uma orgia
lutando por vitória.


ana paula lavado ©  

A noite



A noite

a noite é imensa e cheira a sexo e a morte
os ângulos escuros dos dedos
rasgam as palavras abandonadas à sorte
e à melancolia incansável da solidão.

estou só nesta infinda ausência de pejo
e amanheço dolorosamente na neblina sulfurosa
inventando rostos desfocados
que não memorizei por engano.

recolho os olhos húmidos da noite
e fujo ao odor a cio e a drogas espalhado pelas ruas
e aos corpos abandonados à sorte.

 ana paula lavado ©   


Lugares




Lugares

apercebo-me naquela noite
que não há lugares comuns
sem que os ângulos escuros da cidade
não escondam o olhar perverso
dos embriagados da malvadez.

e amanheço dolentemente
imóvel nos dedos
e com as artérias entupidas.

visto-me à pressa
com a boca a saber ao vómito da noite anterior
e despejo a raiva na neblina sulfurosa da manhã.

Embriago-me num café
antes que a saliva me queime as entranhas
e volto à minha obscura solidão
carregando as minhas tristezas e mistérios
longe da perversidade alheia.

  

ana paula lavado ©   

terça-feira, 30 de julho de 2019

Vivo neste país por engano


Vivo neste país por engano

Vivo neste país por engano.
Deito o meu corpo exausto sobre lâminas aguçadas
esperando que o tempo o amadureça lentamente.
Embriago-me, para que o esquecimento
me dê a sonolência dos corpos sem destino
e as veias não me provoquem a morte.
A noite é imensa e escreve epitáfios nos vidros escuros
tentando roubar-me a solidão.
Os traços de tinta onde ainda escrevo
nestas noites lentíssimas de silêncio
espalham-se no nevoeiro da manhã
em altíssimas paredes brancas
que me murmuram o protagonista dos sonhos
que não ouso ter.
Ao longe, ouço o lamento do mar
atormentado pelas luzes da cidade
e pelas cinzas da combustão dos corpos.
Já não vou deixar gravada, esta voz esparsa
na secreta noite dos oceanos.

ana paula lavado ©

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Uma palavra



Uma palavra

Penso na quantidade de coisas que me ocupam o pensamento,
que deviam ser de uma transparência quase vitral,
e não passam de bocados de alma amachucada.
Quando ontem falei contigo,
e a conversa imergiu em horas desmedidas,
sonhei com as águas profundas do oceano
e com os amores que deixei ao longo do mar.
É inesgotável, a sede deste copo vazio
que bebo à luz infecunda da madrugada.
Queria que fosses uma estrofe
para encher com as palavras que me enchem a alma.
Um verso. Só um verso já seria o suficiente.
Ou uma palavra.

ana paula lavado ©  


As ruas da cidade



As ruas da cidade

As ruas da cidade são inundadas de luzes indiscretas
e vozes esparsas que falam com as cassiopeias.
A noite é imensa e as luzes têm a solidão dos velhos.
Os passos são cadenciados ao ritmo de um poema
escrito por amor, que acabou por não ter nenhum destino.
Um bêbado encosta-se ao candeeiro da esquina
e um carro pára perto da prostituta que mastiga chiclete
e puxa a meia calça já rota de tantas noites.
Uma e outra janela mostram a insónia de quem já não dorme
e um faminto revolve os sacos deixados com sobras de nada.
Já não há corpos diáfanos nem primaveras férteis.

ana paula lavado ©


Vazio


Vazio

percorro as ruas penumbrosas da cidade
e deixo-me entranhar pelo vazio
que invade a noite

os objectos, dissimulados pelo silêncio,
são como pássaros hibernados
ou velhos arrastando o desgosto

a madrugada desce sôfrega sobre o peito

regresso aos versos e ao desassossego das memórias
às metáforas pérfidas e à agonia do cansaço

e enumero as palavras abandonadas à morte

ana paula lavado ©   


Não devo pensar




Não devo pensar

Penso no dia em que deixei a
puberdade.
Poderia ter sido bela, se tivesse sido, verdadeiramente,
puberdade.
Poderia ter sido feliz, se não tivesse sido trocada
pelo dever que só se deve ter depois da
puberdade.
Agora os dias são longos. Desesperantes.
Não devo pensar.
Pensar é tão perigoso como morrer.



ana paula lavado ©   

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Tento não fugir à racionalidade das coisas




Tento não fugir à racionalidade das coisas

Tento não fugir à racionalidade das coisas
colocando os objectos, milimetricamente ordenados,
no local certo.
O corpo arde, inflamado por esta compostura,
que se torna agoniante.
O lugar dos objectos não tem racionalidade.
O lugar dos objectos tem a mestria do Universo
e a incompreensão do nosso pensamento.

Coloco uma cadeira no meio do jardim
esperando que nasçam flores em seu redor.
Sento-me, pego num livro e folheio as páginas amarelecidas
em busca de algum entendimento.
Nem nasceram flores em volta da cadeira
nem entendo a racionalidade das coisas.

ana paula lavado ©