terça-feira, 28 de outubro de 2014

ÂNGULO CONVEXO



Ângulo convexo

Visto as mesmas roupas há muito
talhadas na mesma simetria
nos mesmos ângulos convexos.
Tenho de lhes mudar as aberturas
aprofundar as cinturas
trocar a caxemira pelo batom.
Deixar que o tecido se desenlace
subir a bainha
fazer um reenlace
franzir os folhos
e pousar os olhos
nas linhas onde sobressai a desenvoltura.
E medindo a altura
a graça e o comprimento
aumentarei o horizonte
farei uma prega na deslembrança
no aperto, uma trança
e uma simbiose na fronte.

ana paula lavado © 


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

NÃO EXISTE MUNDO



Não existe o mundo

Não esperes o mundo
que ele não existe.
A incongruência das coisas
está acima das tuas ambições
e das tuas fraquezas.
O teu silêncio,
se é uma defesa para os outros
é uma estrangulação para ti mesmo.

Não! Não existe o mundo.
Existem coisas ásperas
pessoas escabrosas
atitudes proveitosas.

A maldição lenta
o escárnio desprezível
e a malvadez pormenorizada
constroem uma cúpula
que te circunda
que te reprime
que te transforma numa fome desfigurada.

Tu, não és nada
o mundo não é nada
todo o mais é desumanidade.


ana paula lavado © 

Fotografia - Horácio Graça

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

À LUZ INQUIETA



À luz inquieta

à luz inquieta
do ponto mais alto
onde a névoa desperta
o infinito dos astros

flameia uma cor
de clareza indiscreta

e o mar engrandece
do alto dos mastros.

ana paula lavado © 


Fotografia - Marinha Portuguesa - Navio Escola Sagres

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

SOU O TEMPO, NA SOLIDÃO DO TEMPO


Sou o tempo, na solidão do tempo

Não espero que o tempo me dê constelações.
Nas veias, o travo amargo da infertilidade da vida,
ergue-se na penumbra da incoerência dos dias.
Na boca, o presságio virginal da solidão dos poetas,
tem o sabor da nudez das coisas,
quando a nudez das coisas
tem o sabor da ignomínia dos tempos.
Não conheço esta rua. Não sou deste país.
Não sou deste mar, não sou desta terra
não sou deste ar, não sou deste vento.
Sou o tempo, na solidão do tempo.

ana paula lavado © 


Fotografia - Francisco Navarro

terça-feira, 5 de agosto de 2014

QUANDO SINTO A TUA MÃO


Quando sinto a tua mão

Quando sinto a tua mão
em redor da minha cintura
e o mosto do teu beijo
soletrado em arquitectura,

O perfume das flores silvestres
declama versos espontâneos
e a rima da tua pele
arrepia as rugas dos meus anos.

Se um dia tiver da vida
todos os sois da minha loucura
quero o teu beijo na minha boca
quero a tua mão na minha cintura.

ana paula lavado © 



segunda-feira, 4 de agosto de 2014

TENHO EM MIM ESTA DOR


Tenho em mim esta dor

Tenho em mim esta dor
de estar constantemente descontente
de ter nos olhos o infortúnio
de quem não sabe, de quem não sente
de não parir nas minhas mãos
o fruto parido de um ventre.

Tenho em mim esta dor
de ansiar mais do que o sonho
por si deveras pressente
de me imergir nesta loucura
inevitável, insaciada e demente.

Tenho em mim esta dor
mais dor, do que a própria dor consente.


ana paula lavado ©  

segunda-feira, 7 de julho de 2014

TREVAS



Trevas

Sentei a vida à porta do mundo
esperando luz no abismo mais fundo
sulcando trevas dentro de mim.

Adiante da realidade tudo tem fim
e os heróis acabam sempre por morrer.

Ó alma minha, que mais fazer
se o limite da morte é infindo
se os algozes regozijam rindo
a dor mais pérfida e moribunda.

Tão agreste esta piedade vagabunda
oculta em espasmos de ânsia estilizada.

Tão agonizante esta vida que não vale nada.

O meu corpo efémero e transtornado
sem luz, sem brilho, abandonado
morre-se em trevas, à porta do mundo.

ana paula lavado © 


 Fotografia - Frank Navarro

quarta-feira, 2 de julho de 2014

DESNUDA-ME EM DIADEMA



Desnuda-me em diadema

pronuncia-me devagar
soletra-me o pensamento

circunscreve a minha estória
interdita o meu silêncio

incendeia a minha essência
assoreia-me em poema

desembainha a minha alma
desnuda-me em diadema.

ana paula lavado © 


Fotografia - Francisco Navarro

segunda-feira, 23 de junho de 2014

À LUZ DAS COISAS



À luz das coisas

Levante-se o sol. E em todos
os momentos desarmem-me os braços
à luz das coisas. Voo num qualquer
pedaço de limbo, e o orvalho
enxágua-me a face das cores da noite.
A minha figura transcende-se do real e do
imaginário, prolongando os tempos em similitudes
impendentes de repetições. Enquanto tu vieres,
ocultarei as minhas fraquezas mais profundas
dentro de um ventre irreal. Sem que me digas
se ficas, ter-te-ei a todas as horas, sublimando
o útero dos seres etéreos.  
                       

ana paula lavado  ©

quarta-feira, 18 de junho de 2014

ANTES QUE A VIDA LEVE TUDO



Antes que a vida leve tudo

no reflexo dos espelhos
a invenção mais clara
é a nudez suave da pele

é com ela que adormeço

antes que o sono me leve
antes do sonho ter começo

estendo a mão nos lençóis
enrugados de corpos amantes
se a noite se for antes da hora

é com ela que me desnudo

antes que a noite me dissolva
antes que a vida leve tudo.


ana paula lavado © 

Fotografia - Francisco Navarro 

quinta-feira, 5 de junho de 2014

DÁ-ME O DESTINO



Dá-me o destino

Dá-me o destino, mesmo que a urgência
faça do insólito uma ave madura.
Quanto mais o tempo dura
mais o agreste cresce nos campos
mais os poentes se tornam amplos
mais as crenças descrençam a fé.
Nem o abismo, no seu sopé
é tão distante como o fim da tormenta.
Ó vigilante da vida, tenta, pelo menos tenta
que o infinito fique mais perto
que todas as areias do deserto
se imensem em águas transparentes.
O mundo apeja-se dos descrentes
e os montes acobardam-se das tempestades.
Em toda a vida e em todas as idades
há um sol a crescer por dentro
um lugar oblíquo e sem centro
onde gira a nossa sucessão.
Leva-me contigo, pega na minha mão
e afasta-me do lugar dos ausentes
liberta-me das crenças descrentes
e dá-me o destino por condição.


ana paula lavado © 

Fotografia - Francisco Navarro

terça-feira, 3 de junho de 2014

FAZ DE TI A MINHA HISTÓRIA



Faz de ti a minha história

Leva-me de volta à vida
desenlaça-me o movimento
move cada urze que passa
guia cada fantasma de vento.

Escreve o meu nome na estrada
alonga-me em lençóis de linho
descobre o fogo do mundo
solta os passos do meu caminho.

Faz cantigas com os astros
ilumina os meus segredos
abre as janelas fechadas
faz histórias dos meus dedos.

Leva-me de volta à vida
ao cume extremo da memória
tange o meu corpo no teu corpo
e faz de ti a minha história.

ana paula lavado © 


Fotografia - Francisco Navarro

sexta-feira, 23 de maio de 2014

segunda-feira, 12 de maio de 2014

BOLOR


Bolor

Entre as portas, avizinha-se o cheiro
que as paredes descalçam,
e o sol continua bolorento.
Entra frio e humidade nas palavras
e os livros são sempre iguais aos de outrora.
Pouso os óculos em cima de um papel
de letras imperceptíveis e desfeitas
e faço uma metáfora de cinza e cal.
Vi-te passar na rua, e levavas os olhos tristes,
cansados, da poeira dos dias
e das notícias que te matam a alegria.
Ri um pouco, nem que seja por simpatia
para retirar o bolor das paredes.
Ah! Já há humidade entre as portas
e as palavras fazem cada vez menos sentido.

ana paula lavado © 


Fotografia - Francisco Navarro

terça-feira, 29 de abril de 2014

FALA-ME AGORA. NÃO DEPOIS!



Fala-me agora. Não depois!

Fala-me da lucidez das coisas
Dos ventres que pariram as crenças mais terrenas
E dos sois que aclaram as palavras que não mentem.

Fala-me agora. Não depois!

Depois, até a dor se cansa das horas agoirentas
E a espera é sorrateira na demora.

Fala-me agora. Não depois!

Antes que mate os sonhos que não existem
No momento impreciso da concepção.
Chama-lhe o que quiseres
Desde que não te refugies na teimosia
E chames às coisas fruto da cegueira.

Fala-me agora. Não depois!

Depois, o tempo já é invernoso e triste
E as ideias tornam-se pouco claras à luz do dia.
As sombras reclamam rituais metafóricos
Na imanência redentora da morte.

Fala-me agora. Não depois!


ana paula lavado © 

Fotografia - Francisco Navarro


quinta-feira, 3 de abril de 2014

QUANDO AS ÁRVORES CRESCEREM VII



Quando as árvores crescerem VII

Repetem-se palavras desde a infinitude
dos tempos, sem que se alterem pontuações
aos sentimentos. Os caminhos cruzam-se
em todas as profecias, sacrificando a vontade dos
deuses perante a abundância da vontade dos Homens.
Erguem-se altares de sacrifício na euforia
da sobrevivência, esbracejando a um qualquer deus
mortal, a ironia da imortalidade.
O espectáculo é surrealista e o palco, transformado
em turba, exibe uma profusão de progenitores da
ferocidade.
Não bastará o tempo para apagar os instintos
mais ancestrais, nem bastará a aparência para
ocultar o selvagismo. Os olhos esventrados na
imperfeição, prestam culto ao deserto das coisas.
Quando as árvores crescerem, talvez renasça a 
esperança do mundo, e a serpente volte ao Paraíso.


ana paula lavado ©  

Fotografia - Francisco Navarro

quinta-feira, 6 de março de 2014

NÃO É PRECISO TEMPO PARA AMAR



Não é preciso tempo para amar

Todas as horas têm tempo
todo o tempo tem segundos
e todos os minutos profundos
têm sempre algo a dizer.
Talvez haja muito por fazer
talvez haja vida que não sei.
Sempre que por momentos parei
deixei a alma interrompida
provoquei sonolência à vida
desfalquei o prolongamento visceral.
Por favor, não levem a mal
não creiam que foi assunto premeditado.
Antes, erro de tempo impensado
por falta de completo discernimento.
Contudo sempre haverá tempo
de acrescentar minutos à existência.
De que serviria a coerência
se não houvesse tempo para viver?
Dos minutos que ainda possa ter
se a vida me der contentamento
vou amar, como se ama sem tempo
porque não é preciso tempo para amar.

ana paula lavado © 


Fotografia retirada da internet

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

VEM



Vem

vem, porque quero que a noite
seja o leito dos meus cansaços
vem, porque tremo na pele
o suor dos teus abraços

vem pela aurora, vem pela tarde
vem todas as horas que o corpo arde

vem pela noite, vem pela manhã
vem quando a espera já se espera vã

vem quando adormeço
vem quando amanheço
vem quando o sonho é um único começo

vem com o sol, vem com a lua
vem como se eu fosse a única tua

vem pelas ruas, vem pelas ruelas
vem pelas veredas mais estreitas das vielas

vem porque queres, vem porque quero
vem porque amas, vem porque espero!

ana paula lavado ©