sábado, 9 de fevereiro de 2019

Uma palavra



Uma palavra

Penso na quantidade de coisas que me ocupam o pensamento,
que deviam ser de uma transparência quase vitral,
e não passam de bocados de alma amachucada.
Quando ontem falei contigo,
e a conversa imergiu em horas desmedidas,
sonhei com as águas profundas do oceano
e com os amores que deixei ao longo do mar.
É inesgotável, a sede deste copo vazio
que bebo à luz infecunda da madrugada.
Queria que fosses uma estrofe
para encher com as palavras que me enchem a alma.
Um verso. Só um verso já seria o suficiente.
Ou uma palavra.

ana paula lavado ©  


As ruas da cidade



As ruas da cidade

As ruas da cidade são inundadas de luzes indiscretas
e vozes esparsas que falam com as cassiopeias.
A noite é imensa e as luzes têm a solidão dos velhos.
Os passos são cadenciados ao ritmo de um poema
escrito por amor, que acabou por não ter nenhum destino.
Um bêbado encosta-se ao candeeiro da esquina
e um carro pára perto da prostituta que mastiga chiclete
e puxa a meia calça já rota de tantas noites.
Uma e outra janela mostram a insónia de quem já não dorme
e um faminto revolve os sacos deixados com sobras de nada.
Já não há corpos diáfanos nem primaveras férteis.

ana paula lavado ©


Vazio


Vazio

percorro as ruas penumbrosas da cidade
e deixo-me entranhar pelo vazio
que invade a noite

os objectos, dissimulados pelo silêncio,
são como pássaros hibernados
ou velhos arrastando o desgosto

a madrugada desce sôfrega sobre o peito

regresso aos versos e ao desassossego das memórias
às metáforas pérfidas e à agonia do cansaço

e enumero as palavras abandonadas à morte

ana paula lavado ©   


Não devo pensar




Não devo pensar

Penso no dia em que deixei a
puberdade.
Poderia ter sido bela, se tivesse sido, verdadeiramente,
puberdade.
Poderia ter sido feliz, se não tivesse sido trocada
pelo dever que só se deve ter depois da
puberdade.
Agora os dias são longos. Desesperantes.
Não devo pensar.
Pensar é tão perigoso como morrer.



ana paula lavado ©