segunda-feira, 18 de novembro de 2019

já nada sobra desta folha de papel




já nada sobra desta folha de papel

já nada sobra desta folha de papel
indiferente aos retratos dispersos pelas estantes da casa.
o corpo move-se longe das palavras
e escorre-me na pele o suor das noites desertas
e dos sonhos vazios que subitamente ardem em fogo lento.
ao acaso escolho um lugar vazio igual ao das outras noites
e tento adormecer entre as cassiopeias
e o ar marítimo das grandes travessias
que me deixa agonia na boca.

o silêncio desenha-se nas paredes brancas
e as raízes do orvalho descem pelas janelas
trazendo estrelas secretas que ocultam as marés.
já nada me prende a este barco
nem a estes espaços enevoados
nem às águas turvas que pernoitam no fundo do rio.
já nada sobra desta folha de papel
indiferente aos retratos dispersos pela casa.


ana paula lavado ©  

domingo, 17 de novembro de 2019

Desço sobre a noite quando os pássaros dormem




Desço sobre a noite quando os pássaros dormem
e surpreendo-me com o ar triste que vem das janelas
abandonadas às memórias da morte.
Escorre-me na pele o suor dos lençóis que se masturbaram
desocupados de gente e de calor
e o corpo incendeia-se com a boca a saber ao amargo
das noites lentas.  

As ruas estão vazias.
As águas que me pertencem já não são deste rio
e os peixes têm a morte lenta da solidão.

ana paula lavado ©  



Hei-de emergir dos muros escuros da cidade



Hei-de emergir dos muros escuros da cidade

Hei-de emergir dos muros escuros da cidade
ou das terras profundas onde o cheiro a morte me sufoca.
Sentada numa praceta onde moraram as aves
revejo corpos embriagados a dançarem na lama suja do chão.
Um candeeiro de lâmpada partida esconde os rostos
desfigurados de álcool, pastilhas e coca
e o rasto a sexo barato vendido nas esquinas mais escuras.

Rebenta-me uma veia no peito e o sangue espalha-se
e transforma-se em veneno que se alastra pelo corpo
e me inunda, e me carrega a morte lenta da desilusão.

ana paula lavado ©  

A vida e a morte




A vida e a morte

(À memória de Jorge d’Além Mar)

Vejo-te aqui e agora
em todos os lugares possíveis
consciente e visível.
A realidade não me trairá
enquanto não duvidar dos teus poemas
e eu puder fazer de conta que estou contigo.

Nunca duvides do que penso
que do pensamento farei cidades impossíveis
iluminadas por estrelas imortais.

Provavelmente alguma alma nos acompanhará
e deixará de haver fronteiras
invisíveis aos nossos olhos e ao nosso pensamento.

Afinal, vida e a morte não passam de uma orgia
lutando por vitória.


ana paula lavado ©  

A noite



A noite

a noite é imensa e cheira a sexo e a morte
os ângulos escuros dos dedos
rasgam as palavras abandonadas à sorte
e à melancolia incansável da solidão.

estou só nesta infinda ausência de pejo
e amanheço dolorosamente na neblina sulfurosa
inventando rostos desfocados
que não memorizei por engano.

recolho os olhos húmidos da noite
e fujo ao odor a cio e a drogas espalhado pelas ruas
e aos corpos abandonados à sorte.

 ana paula lavado ©   


Lugares




Lugares

apercebo-me naquela noite
que não há lugares comuns
sem que os ângulos escuros da cidade
não escondam o olhar perverso
dos embriagados da malvadez.

e amanheço dolentemente
imóvel nos dedos
e com as artérias entupidas.

visto-me à pressa
com a boca a saber ao vómito da noite anterior
e despejo a raiva na neblina sulfurosa da manhã.

Embriago-me num café
antes que a saliva me queime as entranhas
e volto à minha obscura solidão
carregando as minhas tristezas e mistérios
longe da perversidade alheia.

  

ana paula lavado ©