domingo, 10 de junho de 2018

Irei sozinha o resto do caminho


Irei sozinha o resto do caminho

Irei sozinha o resto do caminho.
Cheguei tarde, quando quis caminhar contigo
e os teus passos já não eram iguais aos meus.
Um dia fui bater à tua porta
mas disseram-me que a havias abandonado
e partido para onde a existência é etérea
e não precisa de mais passos.
Às vezes vejo-te. Envelheceste!
Os teus cabelos brancos estão mais brancos
mas o teu olhar continua com a beleza dos campos semeados
quando despontam as primeiras flores.
Outras vezes escrevo-te. Escrevo-te coisas sem nexo
incapazes de simplicidade ou beleza.
Mas tu sabes que gosto das coisas simples.
Do mar e dos crepúsculos
da quietude campestre
e dos oásis nocturnos.
Tenho que me concentrar mais nas palavras
esperar que o seu significado seja justo
e não me deixar levar por metáforas desajustadas
que tornam dúbia a sua compreensão.

Sabes! Hoje não vou usar metáforas.
Vim somente para te dizer
que já não preciso de passos, para caminhar contigo!

ana paula lavado ©  







Ninguém




Ninguém

Estavas lá, à minha espera,
sentado num banco de jardim
igual aos que havia antigamente.
Folheavas um jornal,
daqueles que trazem as notícias de ontem,
com fotografias de gente importante,
de assassinos e burlões.
A tua atenção era discreta
e o teu olhar vagaroso.
Imaginei-te poeta,
pela serenidade dos gestos,
ou filósofo, pela maneira como observavas o jardim.
Sentei-me ao longe,
num outro banco, semelhante ao que havias escolhido,
para te ler os jeitos e as paixões.
Os pássaros voavam em teu redor, sem medo,
e as folhas das árvores dançavam delicadamente
como se lhes tocasses uma sinfonia.
Podias ser músico,
pela delicadeza das mãos,
ou pintor, pela maneira como acariciavas o papel.
Folheavas o jornal tão vagarosamente
como quem tem a vida por eternidade.
Caminhei pelos passeios de terra já gasta,
cansados dos passos de gentes anónimas,
que amam os pássaros, as árvores e as flores,
e que os percorrem
à procura daqueles bancos de jardim iguais aos de antigamente.
Caminhei pelos passeios de terra já gasta
até ao teu banco de jardim e,
olhando-te nos olhos, perguntei “Quem és?”.
Sorriste, acariciaste-me a face e,
sem que o mistério abandonasse o teu olhar,
disseste “Sou ninguém!”

 ana paula lavado ©   


terça-feira, 5 de junho de 2018

Vem por este caminho onde a estrada é mais longa




Vem por este caminho onde a estrada é mais longa

Vem por este caminho onde a estrada é mais longa.
Teremos tempo de falar de todas as coisas que nos ocupam
o pensamento, e rir das ironias que a vida nos reserva.
Vai longe o tempo em que queríamos tudo. Até os sonhos.
Agora, é o prazer das coisas vulgares que nos seduz
e nos sustenta a alegria de caminhar com destino incerto.

Vem por este caminho onde a estrada é mais longa.
Contar-te-ei estórias de amores e desamores
e de paixões sem estória para contar.
E falar-te-ei do amor. Do amor que nos move,
que nos inflama, que nos dá vida e nos faz morrer.

Vem por este caminho onde a estrada é mais longa.
Vem por este caminho onde o destino é viver.

  

ana paula lavado ©  

Dentro do corpo vive o mistério das coisas




Dentro do corpo vive o mistério das coisas

Dentro do corpo vive o mistério das coisas
o absoluto segredo da incipiência 
do nascimento da alma
e da morte visceral da existência terrena.
Somos meros passageiros
prisioneiros e carrascos do universo
a transumância entre encarnações.



ana paula lavado ©   

domingo, 7 de janeiro de 2018

Amei, ah como amei



Amei, ah como amei

Amei, ah como amei
os campos em pousio antes das sementeiras
e a sedenta vontade das primeiras flores
antes que o tempo as deixasse despertar.

E nos poentes amei o mar
O barulho incessante do sal a germinar no corpo
e o cais onde os navios repousam dormentes.

Amei o silêncio das madrugadas inquietas
as cidades descobertas na vertigem da noite
e a melancolia viandante das cinzas das manhãs.

Amei, ah como amei
as memórias da virgindade da adolescência
e o insano despudor com que me atrevi a amar.  

ana paula lavado ©